Entrevista com Antônio Carlos Sena

Diretor lembra a primeira montagem conhecida do teatro de Qorpo-Santo

Antônio Carlos de Sena, 72 anos, fala sobre o espetáculo que estreou em 26 de agosto de 1966, no Clube de Cultura, em Porto Alegre


foto: Arquivo Pessoal
No depoimento a seguir, concedido em sua casa no bairro Santa Tereza, em Porto Alegre, o diretor teatral Antônio Carlos de Sena, 72 anos, lembra a história da primeira montagem conhecida do teatro de Qorpo-Santo.
O espetáculo estreou em 26 de agosto de 1966, no Clube de Cultura, em Porto Alegre, e apresentava três textos do autor, cem anos após terem sido escritos: As Relações Naturais, Eu Sou Vida; Eu Não Sou Morte e Mateus e Mateusa. Dois anos depois, uma remontagem foi apresentada no Rio, marcando a descoberta de sua obra em nível nacional.
Versos n’O Mocho
"Eu era amigo do Aníbal Damasceno Ferreira desde a infância porque ele era meu vizinho no bairro Azenha. Eu fazia teatro de bonecos, e o Aníbal era um estudioso autodidata da literatura gaúcha, atividade que o levou a descobrir autores que citavam Qorpo-Santo, mas sem conhecerem sua obra. Ele aparecia nessas citações como um tipo popular, meio amalucado e autor de versos que andavam pela Capital de boca em boca. Na década de 1950, o Aníbal começou a publicar esses versos n’O Mocho, nosso jornalzinho mimeografado. Também começou a procurar a obra dele, mas ninguém a conhecia."
O resgate dos livros
"No fim dos anos 1950, Aníbal chegou ao bibliófilo Dario de Bittencourt. Tomou emprestados três dos nove volumes escritos pelo Qorpo-Santo. Para divulgá-los, pensou no escritor e professor Guilhermino Cesar, a quem repassou os livros. Só que o Guilhermino nunca os devolveu. O que achou da leitura? Não se sabe. Em 1963, o professor Fausto Fuser, que havia vindo de São Paulo e ficou muito amigo meu e do Aníbal, se propôs a ir à casa dele resgatá-los. Não sabemos com quem ele falou, se com um filho, com uma empregada, mas conseguimos levar os três livros para o CAD (Curso de Arte Dramática, atual Departamento de Arte Dramática da UFRGS)."
Coincidência inesperada
"Em 1963, Fuser estava ensaiando As Cadeiras, de Ionesco. Eu era assistente de direção. Sentamos e abrimos um dos livros do Qorpo-Santo, onde estavam as 17 peças de teatro dele. A primeira, Mateus e Mateusa, tem como protagonistas um casal de velhos que quer passar sua mensagem para o mundo. Em As Cadeiras, de Ionesco, também há um casal de idosos. Essas quatro personagens têm a rabugice elevada à quinta potência. A mensagem final de As Cadeiras vem de um orador, e o cara é mudo. Já o final da peça do Qorpo-Santo também tem a moral da história dita por outro personagem, que também faz algo sem sentido. Então, evidentemente, nos impressionamos muito com a coincidência. Acabou com o Fausto decidindo montar três peças do Qorpo-Santo (Mateus e Mateusa, As Relações Naturais e Eu Sou Vida; Eu não Sou Morte, que nós três achamos a melhor de todas), mas com o diretor do CAD, Angelo Ricci, proibindo a montagem ao saber que os livros haviam sido tirados da casa do Guilhermino Cesar – nós os havíamos mimeografado e devolvido para o Dario de Bittencourt."
Em busca de um elenco
"Saí do curso e fui trabalhar no Clube de Cultura como diretor de teatro. E o Aníbal sempre insistindo (na montagem do teatro de Qorpo-Santo). Pois, em 1964, comecei a ensaiar com atores amadores que andavam pelo clube. Já sabíamos da importância do Qorpo-Santo como precursor, com aquela singularidade e com a qualidade teatral dos textos. Então, no início de 1966, fomos à diretoria do Clube de Cultura e insistimos para se investir em um elenco de maior expressão, profissional. Foi difícil fazer com que aceitassem a proposta. Era caro. Mas o Clube concordou e contratamos um elenco extraordinário, especialmente o naipe feminino. A estreia foi em agosto de 1966."
"Ou é gênio, ou sou louco"
"O Guilhermino, que já havia voltado depois de passar um tempo na Europa, foi convidado a assistir a um ensaio adiantado, para poder escrever a respeito. Foi e se entusiasmou. E escreveu mesmo um artigo para o Correio do Povo. Antes disso, o Aníbal distribuiu cópias das três peças para vários intelectuais e artistas de Porto Alegre para que se manifestassem. Nenhum se manifestou. Mas, depois do artigo do Guilhermino, e da própria estreia da montagem – vista por todos esses intelectuais, artistas, jornalistas –, a curiosidade em torno do nome do Qorpo-Santo aumentou. Em um momento ele era tido como louco, daqui a pouco já estavam dizendo que ele era precursor do teatro do absurdo! Foi quando o Guilhermino assumiu mesmo (a causa). Foi para o palco e disse assim: ‘Ou Qorpo-Santo é um gênio ou eu sou louco’."
Nervosismo e consagração
"O Aníbal ia fazer uma ponta, mas, de tão nervoso, não a fez. E eu tive que entrar em cena. Foi uma noite muito tensa e importante, sabíamos que assim seria. No final, houve um debate acaloradíssimo. Era a primeira vez no mundo que se encenava Qorpo-Santo! No dia seguinte, saiu uma página praticamente inteira na Folha da Tarde com uma crítica do Walter Galvani endeusando o espetáculo. Da mesma forma, quando levamos o espetáculo ao Rio – depois de ele ficar uma temporada no Teatro de Equipe, em Porto Alegre –, o Yan Michalski, crítico mais conceituado do Brasil à época, ficou entusiasmadíssimo. Disse que o Qorpo-Santo era o precursor do teatro do absurdo e que a história da literatura dramática no Brasil, talvez no mundo, teria que ser modificada a partir daquela noite. Aquele marketing entre a intelectualidade se repetiu no Rio. E deu certo. Pena que o Aníbal, de tão nervoso, tenha perdido a estreia carioca. Perdeu um momento histórico."
Montagem profissional
"Uma coisa que me deixa brabo: muitos estudiosos dizem que a estreia foi apresentada por alunos do CAD. Não é verdade. Muitos dos contratados tinham sido alunos do CAD, sim, mas já eram profissionais. A música original, extraordinária, foi composta pelo Flávio Oliveira. Foi uma montagem profissional."

 Por Fábio Prikladnicki

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