A DRAMATURGIA BRANCALEÔNICA DE QORPO SANTO


L' Armata Brancaleone, sequência de abertura



João André Brito Garboggini
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)

Teatro brasileiro, cinema italiano, dramaturgia
Em minha dissertação de mestrado, realizei uma análise fílmica
de “L’Armata Brancaleone” (1965/66) do cineasta italiano Mario
Monicelli. Uma das etapas do trabalho consistiu numa análise da estrutura
cinedramática do filme.
Para dar continuidade às pesquisas desenvolvidas no mestrado,
estou apresentando este trabalho, com a intenção de fundi-lo a um
processo de trabalho experimental em Artes Cênicas que venho desenvolvendo
desde 1997 e que se estendem em direção ao teatro do
absurdo e posteriormente à obra do dramaturgo gaúcho José Joaquim
de Campos Leão – Qorpo Santo (1829-1883). Trata-se de uma aplicação
do método de análise utilizado no mestrado como forma de
desmembramento do roteiro fílmico, para a elaboração de uma dramaturgia
calcada na obra de Qorpo Santo.
Personagens brancaleônicas em Qorpo Santo
Assistindo ao filme “L’Armata Brancaleone” de Mario Monicelli é
possível enxergar naquele exército um grupo de bufões (BAKHTIN,
1987:7) que evolui num jogo encenado em cada local por onde passa,
utilizando uma linguagem dialetal, na qual os roteiristas Age e Sacarpelli,
junto a Monicelli e Suso Cecchi D’Amico, utilizaram o seu gosto
de deformar as palavras: um idioma híbrido, criado para o filme,
sem compromisso com a reprodução histórica literal, mas com a construção
de uma atmosfera relacionada à Idade Média da Península Itálica.
A criação desse simulacro lingüístico ficcional para o filme de Monicelli
recupera a diversidade dialetal das máscaras da commedia dell’arte.
O grupo cômico de L’Armata Brancaleone estaria mascarado de
“Exército”, sendo que Brancaleone seria uma espécie de líder fanfarrão
e desastrado como era a máscara do Capitano, uma das personagens
típicas da commedia dell’arte. Com efeito, trata-se de um pusilânime
que presume farroncas de valentão, como a personagem Miles
Gloriosus1 da comédia plautina.
Partindo do pressuposto de que Qorpo Santo, em sua dramaturgia,
carrega certos traços que poderiam ser chamados “brancaleônicos”,
desde a elaboração de uma forma de caricatura verbal até a possibilidade
de sátira a um nacionalismo quixotesco, entre outras coisas, procuro
aplicar o método de análise realizado na dissertação de mestrado
para desenvolver uma cinedramaturgia cômica, criando uma espécie
de “Revista do Qorpo Santo”, a partir da identificação de características
cômicas presentes na obra do autor gaúcho que possam aproximar-
se dos procedimentos do teatro cômico popular italiano.
Como no filme de Monicelli, as comédias de Qorpo Santo estão
repletas de personagens que buscam suas identidades ainda incompletas,
apoiando-se na perseguição de objetivos incertos que comprometem
sua própria coerência cênica, levando-os a falharem, criando um
ambiente, onde o nonsense, característico do universo proto-surrealista
do autor gaúcho, transforma as personagens em meros esboços do
ser humano.
Para a composição dramatúrgica, o ponto de partida tem como
base a estrutura do roteiro de L’armata Brancaleone que, por ser
episódica, possibilita a formatação dos diversos quadros que podem
compor uma revisitação da obra de Qorpo Santo.
Levando em conta certas características bufonescas perceptíveis
nas personagens de Qorpo Santo, procuro verificar se os grupos de
personagens formariam bandos de bufões que permeiam as cenas e
desenrolam o fio condutor de uma ação teatralizada. No entanto esse
fio, em vez de fluir se afrouxa, podendo ser interrompido, causando a
impressão de construir uma rede de itinerários, obstáculos, perseguições,
enganos que ameaçam a linearidade da dramaturgia.
Personagens e Narrativa: dois elementos entrelaçados
A criação de personagens em L´armata Brancaleone é fundamental.
Isto também remonta à tradição teatral popular da commedia dell’
arte. Monicelli provavelmente parte da criação de suas personagens
para chegar às situações que compõem os roteiros. A presença de elementos
teatrais e a elaboração de personagens tipificadas (VENEZIANO,
1991:120) em L’armata Brancaleone pode ser percebida, por exemplo,
logo na animação de abertura do filme, que aponta os movimentos
e a aparência das personagens que são como marionetes.
A movimentação das figuras expostas nessa animação inicial reforça
sua aparência desumanizada. Personagens planas, portanto tipificadas que, de certa maneira, correspondem a uma bidimensionalidade
que abole sua perspectiva, de modo que, ao relacionar tais figuras
animadas com as personagens das peças de Qorpo Santo, se torna
possível atribuir a estas últimas características de bonecos manipuláveis,
com movimentos mecânicos, construídas a partir de gestualidades
exteriorizadas, o que lhes confere comicidade. Esta criação de personagens
planas e de ação mecanizada aparece como uma opção para a
aproximação das personagens de Qorpo Santo, na medida em que o
autor gaúcho não individualiza as suas personagens e possibilita a criação
de alguns tipos fixos recorrentes em diversas de suas comédias.
Procedimentos e elementos
O procedimento para a realização deste trabalho consiste na transposição
do método de análise fílmica que apliquei no filme L’armata
Brancaleone, para o desenvolvimento de uma escritura cinedramatúrgica
que possibilite a elaboração de um roteiro cinematográfico, levando
em consideração a estrutura cinedramática verificada no desmembramento
em episódios realizado em L’armata Brancaleone.
A constatação das relações entre as manifestações de teatro popular
e o filme de Monicelli possibilitaram perceber no filme dois nexos
importantes, que podem ser apropriados para a elaboração do roteiro
fílmico:
1) a elaboração de personagens fortemente construídas a partir
de suas características sociais e sua aparência exterior, deixando
em segundo plano seus conflitos interiores;
2) uma estrutura narrativa forjada sobre um roteiro de episódios
aparentemente autônomos entre si, que conferem ao filme
uma linearidade tênue alicerçada na jornada do grupo em
direção a seu objetivo final.
A idéia é aplicar esses dois itens para a confecção de um roteiro
inicial com o objetivo de elaborar um mapeamento da obra de Qorpo
Santo, a partir do qual serão criadas as cenas que comporão o roteiro
final. Percebendo uma relação entre a elaboração das personagens e o
desenvolvimento da ação cênica, é possível que elas existam antes da
formação do roteiro e este possa ser construído a partir de suas características.
Existe também a possibilidade de que o roteiro possa ter sua
forma já estruturada, como seqüência narrativa e, por sua vez, as personagens
serem construídas no desenrolar das cenas.
Assim pretendo experimentar essas duas vias, selecionando uma
delas para criar um roteiro, a partir da leitura da obra teatral de Qorpo
Santo, após analisar as personagens, com seus atributos e funções
(PROPP, 1984:81) em suas ações teatrais, desmembrando as seqüências
de acontecimentos que engendram os episódios constituintes da
estrutura que comporá, ao fim e ao cabo, o roteiro como um todo.
No plano da criação das personagens, a intenção é enfatizar os
atributos das personagens, em três rubricas fundamentais: aparência e
nomenclatura, particularidades de entrada em cena e habitat (PROPP,
1984:81-82).
Nota
1 Personagem protagonista da comédia Miles Gloriosus de Plauto.

Publicado em: Anais do IV Congresso de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas (Memória ABRACE X) Rio de Janeiro 2006

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